DNF (Do Not Failwithyoufriends)

HEADINGSOUTHWEST ou a vez que falhei mais vezes

Fiquei bastante tempo com o tracker na mão, antes de premir o botão de off, e ver a luz do GPS a ficar vermelha, para depois se desligar para sempre. Continuar em frente não ia ser fácil, mas desistir também não foi.

Passaram 4 dias desde esse momento. O último CP, em Alte, fechou ontem, duas horas depois de chegarem os ultimos participantes. E só agora consigo encarar o teclado para tentar escrever sobre o que se passou.

Podia arranjar mil desculpas para justificar porque não quis seguir para o CP2, quando estava apenas a 50 kms dele, sentado na esplanada do Cafe Lince, na Malcata, com o 3° classificado.

Talvez as dores que sentia nos glúteos, de cada vez que me sentava no selim, fossem uma desculpa suficientemente forte para desistir. Se não chegasse essa, podia mostrar a fotografia que tirei ao pés, onde se via perfeitamente, o tornozelo do pé esquerdo inchado, quase com o dobro do tamanho do seu gémeo do pé direito.

Ou então falaria da tarde anterior. Da subida desde Vide, debaixo de um calor sofucante de mais de 40°, naquelas rampas do Aguincho e de Vasco Esteves de Baixo, terras que conheço tão bem, por estarem tão próximas da aldeia do meu pai. E depois da chovada de granizo que me apanhou entre Alvoco da Serra e Loriga, sem nenhum abrigo à vista, cerca de uma hora depois. Podia falar dos 40° que estavam nesse momento em que premi o botão off, nessa esplanada, e das moscas que não me largavam. Da Jackie que tinha barulhos por todo o lado, do saco do guiador, que teimava em mostar-me que tinha sido uma péssima escolha para esta viagem. De tanta coisa mais.

Podia esforçar-me um pouco mais e descrever cenários tão apocalípticos, que estou certo que estariam totalmente do meu lado, quando vos dissesse que seria uma estupidez enfrentar aqueles 600 kms que ainda tinha pela frente, com o vento sul que estava cada vez mais forte  e que me levariam, pelo menos, umas 30 horas a pedalar.

Mas não. Todas essas razões não são suficientes para ficar a meio de um sonho. Todos os outros SouthWesterns passaram pelo mesmo, ou por muito pior, e seguiram sempre caminho.

Nos dias antes da aventura, tinha feito o meu plano. Se tudo corresse conforme planeado, chegava a Alte na 4a antes da hora de almoço. Chegaria a Monsanto às 21:00 e poderia dormir 6 horas em Monfortinho, e continuar para Sul no dia seguinte. Eram 15:30 quando abandonei, a 50 kms de Monsanto. Estava tudo a correr ainda melhor do que planeado, pois tinha dormido 3 horas num hotel em Pinhel, e tinha planeado pedalar a noite toda.

Adorei o 1° dia. Ou nem sei bem se me lembro dele. Pedalei aqueles 300 kms pelas serras do Açor e da Estrela e pela noite fora sem parar, como uma máquina focada em objectivos e números.

Um pouco antes de começar tinha falado com o Heorhii Veremiev, que apertava a maquina fotográfica ao peito e me contou da sua vontade de regressar a Miranda do Douro a pedalar, depois de terminar o percurso em Alte. E mesmo assim, parti sem vontade de admirar a paisagem à minha volta. Sem vontade de me deslumbrar com o mundo, com as aldeias e com as pessoas.

Em Manteigas jantei a correr, com tinha nos planos. Pedi o jantar e troquei de roupa na casa de banho sem perder tempo, como se fosse um piloto de F1. Saí da casa de banho e as pataniscas com arroz de feijão já estavam no meu lugar à espera. Conversei com o Luis Barreiro, ao mesmo tempo que mastigava o jantar e fiquei feliz por sair 10 minutos antes dele, como se isso me desse qualquer vantagem. Provei algumas cerejas que o Rui Tremoceiro me tinha oferecido e nem pensei nos quilometros que ele tinha feito para ali estar, e da alegria que teve em mas oferecer. Como não pensei que não tinha agradecido à Maria João a sua dedicação a todos nós, já pela segunda vez, nem lhe tinha dado as palavras de incentivo que gostaria de ter sido capaz de dar, pela sua excelente coragem de enfrentar o GravelBirds.

Parei este texto por aqui. Sem vontade de o publicar.

O que procuras afinal, Tiago? Uma desculpa para o facto de não teres conseguido ir até ao fim? Um motivo para fazeres a promessa de nunca mais voltar a desistir de um sonho?

Não sei o que procuro, mas sei o que tenho mesmo de fazer. Afinal, como disse o Marco Francisco, que tem o dom da palavra, é que isto não é nada sobre uma corrida, nem sobre o tempo que demoram 1100 kms a passar sob as rodas de uma bicicleta.

É sobre amizade e gratidão. É sobre sair da rotina e viver uma vida de desafio. De descoberta. É sobre esvaziar o corpo de tudo o que não é essencial e enchê-lo de sentimentos puros. É sobre regressar à vida com vontade de a viver mais intensamente. De voltar a ver o sorriso da Querida Esposa e de sentir o seu abraço, como se pudesse ter estado, algum dia, perdido para sempre.

É sobre o David Cruz e o Rui Ribeiro, verdadeiros artesãos de aventuras que nos roem por dentro, semanas a fio, até ao momento em que nos lançamos a elas. Verdadeiros chef’s, que nos servem de bandeja memórias impossíveis de esquecer. Obrigado por aquela subida à serra da Estrela sob um dilúvio monumental. Nunca esquecerei a calma e a cor daquelas veredas, nem como venci o Adamastor desta vez.

É sobre um gajo que faz quase 1000 kms para ir ao nosso encontro, apenas para nos dar um abraço forte, recheado de cerejas e de sorrisos. Como se agradece um momento destes?

Sobre a admiração que tenho por quem se voluntaria para estar à nossa espera, dias e noites a fio. Sobre quem conhece os dois lados da aventura. Sobre quem também experimenta a dor de tentar e não conseguir. Como eu gostava de voltar atrás, em Manteigas, e agradecer essa amizade.

Sobre a vida a acontecer. Amigos que recebem notícias devastadoras e que encontram outros desafios para vencer. Será que aquele beijo que te dei foi forte o suficiente?

Sobre ver outros amigos a lutar. E não perceber que não lutavam contra mim, mas comigo. Ao meu lado. Cada um contra os seus medos. Cada um contra os limites que julga ter. E por ter desperdiçado todas as oportunidades que tivémos para partilhar a intensidade dos dias a fio.

É sobre ter uma prima que é mais do que uma irmã. Daquelas com que sabemos que podemos sempre contar, sem mas nem porquês. Uma irmã que nos encaixa na sua vida super acelerada, sempre com um sorriso nos lábios. Genuíno. O sorriso mais genuíno do mundo. Que nos acolhe e nos devolve a casa, sãos e salvos, como uns bebés.

E é sobre um gajo grande e forte, como um Gaulês que carrega menhires às costas e que come javalis assados uns atrás dos outros. É sobre um gajo que apesar de ser pouco mais novo do que eu, podia bem ser meu filho. Porque teria muito orgulho nele e na sua amizade sem limites. Este HeadingSouthWest não foi mesmo nada do que eu tinha planeado. Mas aquele momento na esplanada, em que premimos juntos o botão off, e em que encostámos as super-bocks geladas uma à outra, e tudo o que se seguiu, será mais uma daquelas histórias que me irei lembrar quando estiver quase a morrer (com 101 anos).

É sobre chegar a casa e sobre a explosão que acontece dentro de nós com o abraço de quem nos ama, independentemente de termos vencido ou de nos sentirmos vencidos.

Esta história é também sobre a paixão de fotografar e de captar a essência das pessoas. Sobre a arte de eternizar os momentos e reavivar as emoções e os sentimentos, com essa arte. Obrigado, Luis Luz (tens o nome do meu sogro, que também fotografa com intensidade e paixão). Nem sabia o que pensar em relação a estes dias intensos que passámos juntos. Agora recordei tudo e tinha de soltar estas palavras, que iam ficar perdidas para sempre.

1 thoughts on “DNF (Do Not Failwithyoufriends)

  1. Não há muito a fazer quando os nossos precisam de nós… É arranjar um bocadinho e estar lá! Até para os que não são nossos às vezes arranjamos esse bocadinho e sabe-se lá porquê!
    Deixa-me feliz saber que pude ajudar de alguma forma num momento difícil como esse… Nas corridas passamos pelo mesmo muitas vezes, mas os sonhos nunca morrem!!!!

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