Transarrábida’23

– Então sempre vais ao Transarrábida’23? – Pergunta acutilante da Querida Esposa.

– No sábado passado tinhas ido fazer o reconhecimento do percurso com o @joao_manuelpinto, com o @andre_alves_obelix, com o @mrlamb72 e com o @carlosespiguinha e juraste que não ias hoje!  – Detestas pedalar com calor e ainda por cima nenhum dos teus companheiros habituais vai contigo.

Ir com o Pinto, de btt, significava ter de limpar as teias de aranha da Lara Croft (a minha bicicleta de BTT) e ir a sofrer o tempo todo atrás dele. Ir com o Espiguinha era um risco acrescido, porque o gajo é rijo que nem 2 pêros e ainda tem uma bicicleta roda 26 mais pesada do que a minha. Se eu tivesse de desistir nunca iria receber o perdão de N. Sr. Joaquim Agostinho.

Tinha de ir. Tinha créditos de sobra, acumulados com as comemorações das bodas de jade com a Querida Esposa e vontade de terminar o mês no strava com mais de 1000 kms feitos.

E como o melhor plano é não ter plano nenhum, saí de casa de braço, de pés dados com a Jackie a pedalar. Haveria de encontrar alguém que me fizesse companhia ao longo de todos aqueles kms de Arrábida!

Palmela, às 7:30 da manhã,  estava mais cheia de bicicletas do que Amsterdão em hora de ponta. Aquilo, nem nas festas das vindimas tem tanta agitação como no início do TransArrábida’23. Todos os modelos de bicicletas, de GPS, de Sapatos, de jerseys, de Di2, 3 e 4, não havia um só que não se visse por ali. Mas ao contrário da festa das vindimas, nem 1 garrafa de moscatel aqueles duzentos e tal gajos conseguiram acabar!

– Mau presságio! Gajos que não bebem um copito de moscatel de manhã não são boa companhia. Fixei dois ou 3 que ainda tinham o copo na mão e que ainda lambiam os bigodes e marquei-os como as rodas a seguir. E quando dei por mim, depois de me ter sido dada a honra de tocar o sino do Titanic que assinalava a partida, já só vi um bigode ao pé de mim. Mas era um bigode dos rijos e dos que inspiram confiança. Fizemos um último brinde (a abaladiça ao contrário) e lá partimos os dois, eu e o João Moustache Palma, ocupando os últimos lugares de um pelotão que já não se via e que já devia ir a léguas.

O João Palma é um puto com sorte! Não só no jogo do Tour Fantasy by Tissot (que ganhou sem saber bem como), mas porque caiu nas graças do Pinto. E se o Pinto acha que vale a pena perder tempo com ele, então podem estar certos que vale mesmo. Só por isso, fui capaz de manter a calma quando nos primeiros kms, o gajo ia comentando, com um sorriso trocista, os barulhos que a Jackie ia fazendo por todo o lado. Estive quase para passar para Zona 2 e deixá-lo para trás, mas lembrei-me do que aprendi no último episódio do endoo e fiz o protocolo respiratório N°32B (o protocolo para ter calma com os putos) e continuei a dar-lhe roda, tentando explicar-lhe, calmamente, que a Jackie tem idade para ser mãe da sua Scott sem nome e que bicicletas Scott dessas ou parecidas nem os meus filhos a querem! (Correcção: Ainda não tinha sido formalmente apresentado à Scottie e o João fez questão, e muito bem, de me provar que realmente ama a sua bicicleta. Eu, no fundo, sabia que ele era um Homem educado e de bons valores!)

Distraído com a lição nem me apercebi que ia depressa demais e à saída do Pinhal Novo já estávamos a apanhar o pelotão. Aí encontrámos o Hélder Martins e o Nuno Malaquias (a dupla masculina mais forte do HeadingSouthWest’23) e uns amigos das Águias de Camarate (o Tiago e o Joao Duarte) e desde aí, seguimos juntos até ao fim.

No cabo Espichel fizemos a primeira paragem de qualidade. Porque pedalar não é só a parte de fazer andar a bicicleta. É principalmente a parte de rir à gargalhada em volta de um prato de farinhas torradas, de latas de coca-cola e de muitas histórias de aventuras de bicicleta!

A descer para o Meco saltou-me um bidon. Olhava para baixo e via o bidon a rolar ao meu lado e olhava para a frente e via a malta a desaparecer. Travei e o bidon veio calmamente ter comigo, como se fosse telecomandado. Dei-lhe um raspanete e segui no encalço dos outros 5, sem saber se tinham parado ou não. Umas curvas depois, lá estava o João Duarte à minha espera e seguimos juntos. É nestes pequenos gestos que as pessoas se revelam e que se criam laços de reconhecimento, que se transformam em amizade, à medida que os kms se percorrem juntos.

No Portinho da Arrábida não fomos ao banho por um triz. O calor e a limpidez da água bem que convidavam, mas o pior do caminho ainda estava por fazer. E molhar as carneiras não é aconselhável a quem tem rabo sensível e muitos kms por fazer.

Mas logo na saída fizemos mais uma pausa técnica para refrescar: águas frescas, frizes limão e magnuns de amêndoas a perder de vista. E muita conversa com os empregados do café,  que queriam saber tudo sobre as nossas bicicletas e sobre o que andávamos ali a fazer.

Subimos o Portinho,  depois o solitário e depois o convento com um sol inclemente. Finalmente estávamos no topo da Serra e parecia que o mais difícil já estava! Nestes momentos esquece-se todo o cansaço e as energias voltam em força. Aproveitei o bom momento para dar uma breve lição de cultura velocipédica aos meus amigos, levando-os a conhecer um dos marcos mais importantes da serra da Arrábida: a marca da Risca Cinza  (quem não conhece a história, procure no blogue o relato dessa aventura mítica do ciclismo mundial).

O percurso mandava virar à direita para a sétima bateria, e fizemos-lhe a vontade. Aí, a vista sobre o estuário do Sado e a península de Tróia é fabulosa, e a presença daqueles canhões torna tudo ainda mais inesquecível e poderoso. Mas desta vez haviam ainda mais canhões do que o normal, e um rapaz que lá andava a passear com 2, fez o favor de nos tirar uma fotografia de grupo. Repara bem, Querida Esposa, que sou apenas eu que olho para o fotógrafo. Todos os outros seguiam lânguidos os 2 canhões que iam seguindo caminho, balançando as ancas ao sabor da ondas que se agitavam no mar, atrás de nós.

No fim da descida da serra, voltámos à esquerda na direcção de Azeitão. Mas o caminho não era o mais convencional e aquela passagem pela aldeia da Rasca deu cabo do que restava das nossas pernas. A subida dos Picheleiros, logo de seguida, acabou com o resto e fez soar os alarmes: necessidade imperiosa de parar com os disparates e almoçar algo de substancial! A melhor parte de pedalar, finalmente!

Eram 13:30 e tínhamos vindo a falar de choco frito o caminho inteiro. E eu conhecia um bom restaurante ali em Azeitão, mesmo à nossa espera.

A menina do piercing do café de esquina de Azeitão  não nos serviu choco frito na esplanada. Que não,  que se quiséssemos choco tínhamos de ir para a sala interior. Que o patrão não autorizava e que ainda a despedia. Por unanimidade, decidimos pedir pregos, batatas fritas e cerveja fresca. Muita e muito fresca! Ainda faltavam algumas subidas duras, o calor não dava tréguas, mas o pior já tinha passado. E a cerveja sabe sempre bem e dá coragem para a parte final!

Depois do almoço é que se fez a seleção entre os bons ciclistas e os ciclistas assim-assim. Eu explico: um bom ciclista é aquele que domina de tal forma as lides domésticas, que pode pedalar em paz, mesmo que se atrase nos copos com os amigos e que chegue a casa 3 ou 4 horas depois do combinado. Um ciclista assim-assim é um gajo que, até pode ter um bigode à macho ou chamar-se Malaquias, mas que recebe uma simples chamada do lar e deixa os ultimos kms por fazer e as cervejas do final para beber. Nem o Wout Van Aert, que tinha a mulher à espera de bebé no Tour, deixou etapas incompletas. Acho que quando chegou a casa, depois de muitos telefonemas alarmistas da mulher, foi só para ir ao casamento do puto! João Palma e Nuno Malaquias, foi um dia fantástico graças à vossa companhia! Sofrer assim tão bem acompanhado até dá gosto!

E os 4 bons ciclistas ainda subiram para a capela das necessidades, ainda entraram em Setúbal junto ao Rio, ainda subiram os montes S. Paulo e finalmente a subida para Palmela, quando tiveram de tomar outra importante decisão, daquelas que distinguem os ciclistas mesmo bons dos ciclistas bons assim-assim: beber mais uma cerveja para a despedida ou seguir já para o carro, com o rabinho entre as pernas, para não chegar atrasado a casa e ouvir um raspanete da cara-metade: – Isto é que é depois de almoço? Era só uma manhã a pedalar e de tarde íamos às compras, não era?

As andorinhas…ops. valorosas Águias de Camarate tiveram imperiosos compromissos urgentes que os fizeram pedalar para chegar ao carro o mais rapidamente possível. Muito obrigado ao Tiago pela alegria e por ter estado tantas vezes na frente do grupo e ao João pela atenção que teve comigo quando perdi o bidon. Foi um prazer pedalar convosco!

Restava eu e o Hélder Martins, que mantinha o mesmo sorriso que tinha no início da manhã e que, por ele, estava pronto para repetir a volta. Antes que tivesse essa ideia liguei ao Pinto, que por sorte ainda estava por perto, e lá fomos beber a prometida cerveja no final, como é tradição do TransArrábida!

Dali a casa só faltavam uns 25 kms, mas o Hélder, com tanta cerveja, não sabia se conseguia chegar ao carro e claro que não o ia abandonar, depois de termos feito tantos kms juntos. Subi com ele ao Castelo e assegurei-me que abria o carro certo. Lá nos despedimos com um forte abraço e quando me ia a preparar para um CR até casa, percebi que o rapaz tinha ficado triste por não poder passar mais tempo comigo e receber mais ensinamentos.

– Pronto, Hélder. Eu abdico de fazer estes 25 kms a pedalar para casa e deixo-te levares-me a casa de carro. E a Jackie pode partilhar um pouco da sua experiência com a Papa-Léguas!

E cheguei a casa são e salvo e feliz da vida, com uma dor de pernas daquelas saudáveis, novos amigos e mais histórias para contar.

Obrigado Hélder. És realmente um UltraCiclista cheio de força e boa disposição, e a alegria que transpiras por todos os poros é contagiante! Ah, e obrigado pela preciosa boleia…é que não me estava nada a apetecer chegar a casa tarde e ouvir um ralhete da Querida Esposa!

– Com que então chegavas a casa logo depois de almoço, não era! Deve ter sido cá um almoço,  a julgar pelo hálito a cerveja que tresanda! Ah, e nem penses que te dou um beijo antes de ires tomar banho!

Moral da História

Bom, parvoíces à parte (porque não foi nada disto que se passou e eu, quando escrevo no blogue, faço por parecer o maior bazófias de sempre), a moral da história, ou aquilo que acho que todos devem reter na memória, é apenas isto:

A maioria das vezes que sais para pedalar vais sozinho. E queixas-te sempre da falta de companhia e que assim é uma seca, né?Agora que podes pedalar com companhia vais desperdiçar a oportunidade e despachar tudo num instante? Naaaa….

O Transarrábida não é uma prova, no sentido circunscrito na palavra. Não ganhas rigorosamente nada em fazeres aquilo em contrarelogio. Não tens prémios nem qualquer reconhecimento. Mas no fundo, também é uma prova, sim: uma prova de doces tradicionais e de petiscos, de Farinha Torrada, de Tortas de Azeitão, de Choco frito! Uma prova de que consegues fazer novos amigos (e fazer amigos numa prova dura como esta é saber partilhar com eles os bons e os maus momentos). E, como diz o Sérgio Godinho, coisa mais preciosa, no mundo, não há!

A Arrábida merece ser celebrada assim, da maneira certa, por tanta gente com tão boa onda, todos os anos! E todos os cães e gatos do Cantinho da Milu também!

Obrigado a todos por terem vindo ao TA. Obrigado aos 5 amigos que partilharam comigo esta viagem! E obrigado Pinto, por tudo isto e mais tudo o resto! Não te esqueças que jurámos que seria para toda a vida! Até sermos velhinhos e fazermos isto de bicicleta eléctrica!

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