The Goats. Sem pressas

Já não deve restar um único vestígio do “The Goats” na estalagem da Varanda dos Carquejais. Talvez, se procurarem muito bem, debaixo dos sofás do lobby ou nalgum dos quartos ocupados há dias, ainda consigam encontrar um parafuso de titânio ou uma câmara de ar esquecida.

A primeira edição do “The Goats” já terminou há muito tempo. O Edgar já deve ter chegado a casa, ter ido passear com as filhas ao parque e adormecido profundamente, enquanto as miúdas lutavam desesperadamente por um lugar no baloiço. No site do “LostDot”, já nem sequer tens o link para a o “The Goat”. Tens de procurar nas provas recentes. Faz isso. Faz isso agora, antes que seja tarde demais e diz-me o que vês.

Eu vejo um ponto azul com o número 22, que ainda se move. Quase a chegar ao fim, a uns 50 kms da meta. Vejo uma lista que espera apenas por mais um dado: o tempo que o Rui Tremoceiro leva a percorrer o último troço do percurso, entre o Bussaco (CP4) e a Torre (CP5). Infelizmente o site é muito limitado, e aquele ponto, que se move  tão lentamente que parece que está parado, não passa disso mesmo. Se fosse um site a sério, podiam ver que por baixo daquele numero 22 está um sorriso daqueles, de orelha a orelha,  um sorriso de quem vem a guardar bem dentro de si cada pedra, cada caminho, cada paisagem por onde passa.

É muito raro atender o telemóvel ao domingo de manhã (honestamente, também é raro ele tocar). Mas hoje tocou e era o Rui Tremoceiro. Estive para não atender:  – Caraças,  se ele me pedir para o ir buscar à Serra da Estrela, como é que vou arranjar uma desculpa para não ir?

O Rui, feliz da vida, tinha acabado de viver um daqueles raros momentos de felicidade na vida, e tinha de o partilhar com alguém. E tal como disse o Gonçalo Cadilhe, quando chegou ao topo de um monte sobranceiro ao Machu Pichu, e dali, sentado a admirar o mais belo por do sol da sua vida, e quis abraçar alguém, mas olhou ao redor e viu que estava sozinho: A felicidade só é plena quando é partilhada!

Imaginei-me, enquanto o ouvia ao telefone a alternar palavras com inspirações e expirações ofegantes, ali sentado com ele, num dos bancos de madeira defronte do café da Maria, em Linhares da Beira. A fazer tempo enquanto o sol sobe mais um pouco acima das serras e enquanto a Maria não chegasse para abrir o café. A pegar no jornal comprado ontem, e a ler mais umas notícias à sorte, apenas pelo prazer de sentir que não há pressa nenhuma. Nem na prova, nem na vida.

Imaginei-me a ouvir um Boa-dia rouco e a levantar os olhos do jornal. A ver um homem de olhar calmo e pele queimada pelo sol a sentar-se ao meu lado, e a começar uma conversa. – Então o meu amigo não é cá destes lados, né? E responder que não,  que ando a descobrir um Portugal perdido que nem nos lembramos que existe. E de chegar outro homem, este mais velho e baixo, com um cajado na mão, o cão a deitar-se numa nesga de sol, mais atrás. A cumprimentar-nos com um Bom-dia ainda mais rouco, de o ver olhar para o céu e de o ouvir a dizer que hoje ia ter mais sorte, que o tempo não ia estar tão quente.

Há esperas que não são esperas, quando o tempo corre a teu favor.

A Maria chegou e levou a conversa lá para dentro, onde o cheiro do café depressa ocupou todo o espaço entre nós e as paredes de pedra do pequeno café da Maria. Tinha saído da aldeia há quase 30 anos. Tinha conhecido a América, deixado uma boa parte dela em Boston, mas decidiu em que era em Linhares da Beira que era feliz. Ali, naquele pequeno café, construído pelos seus pais com o granito da serra da estrela.

Se eu fosse o Rui, acho que não me continha a desatava a contar à Maria e aos dois companheiros de café, que vinha de uma viagem fantástica e que tinha percorrido toda a Beira de bicicleta, por caminhos perdidos, desconhecidos da maioria mas que fazem parte da vida de poucos pastores como o senhor que se sentou ao meu lado esquerdo e de sapadores florestais, como o que se sentou ao meu lado direito. E não teria pressa de sair: quantos de nós têm a felicidade de partilhar um momento destes com desconhecidos tão nobres como os que se aqueciam com uma chávena de um café tão bom.

Mas as cabras agitavam-se lá fora, na urgência de chegar ao pasto. E havia muito mato para limpar, na encosta daquele lado acolá, antes que o sol suba mais alto e nos obrigue a parar o trabalho antes do fim. E a Maria tem uma horta para tratar e regar, que o trabalho do café não dá legumes para a sopa.

A esta hora o Rui Tremoceiro sobe à Torre, olhando para baixo e despedindo-se de todos. Despedindo-se destes 8 dias de procura e de descoberta. Tem a certeza de chegar ao carro daqui a pouco e de se juntar à família ao jantar, em torno de umas migas vegetarianas ou de algo especial que a sua Susana lhe preparou com amor.

Espero que ainda vá a tempo de ler estas palavras antes de chegar à Torre, e que não consiga reter todas as lágrimas que lhe vão tentar lavar o rosto. Os homens choram sim, principalmente de felicidade.

Eu sei que era isto que me pediste sem pedir, Rui, quando me telefonaste. Que escrevesse as tuas palavras que tão bem me soubeste transmitir. E eu não consegui manter os planos de ir cedo para a praia nem evitar estar aí ao teu lado, a partilhar a tua felicidade.

Um grande abraço e obrigado. Não estava nada à espera de subir contigo à montanha mais alta de Portugal hoje!

Deixe um comentário