O Caminho – conclusão

Não fiz O Caminho para receber nenhum indulto papal. E confesso quem nem fui ver nem rezar no túmulo do Apóstolo.

Uma das razões para tal foi a Lael (a bicicleta). Depois de tantos dias em que se portou tão bem, nem pensar em deixá-la sozinha, presa com os cadeadinho que levei, à porta da Catedral (que nem tem suportes para bicicletas à porta tem). Por muito santos que sejam os peregrinos, convém não testar os limites do pecado da cobiça do bem alheio.

Mas a principal razão foi a desilusão com o que se fez da ideia de peregrinar. Se no início os peregrinos eram vistos como enviados do céu, e toda a sociedade em volta d’O Caminho se organizava para os cuidar e dar apoio, hoje é o oposto. O peregrino é uma fonte de rendimento que importa explorar, e em qualquer povoação por onde passe O Caminho, os cartazes a anunciar menus peregrino com carimbo, albergues e lojas de recuerdos nascem como cogumelos.

A minha ideia de ir a Santiago de Compostela de bicicleta era a de aproveitar uma semana que tinha livre. A Querida Esposa foi em negócios (palavra cara para dizer que foi fazer uma formação no âmbito do projeto Erasmus) para a Grécia. E para não morrer de saudades em casa, preferi morrer de saudades a pedalar. Mas tinha de ter um objectivo: pedalar só por pedalar, sujeito ao mau tempo e às saudades da casa, comigo normalmente resultam num – já chega! Apanho masé o comboio para casa.

O Caminho Português liga as principais cidades portuguesas a Santiago de Compostela e recria o caminho que os peregrinos faziam na idade média para ir venerar o túmulo de Santiago. Mas não se ponham a inventar, como me disse um senhor espanhol em Tui, que o percurso atual é exactamente o percurso que se fazia no século XI. Quem percebe o mínimo de geografia e quem tem o mínimo de inteligência percebe que os peregrinos cansados de tanto andar, seguiam os caminhos mais fáceis, em vez de andarem a fazer incursões montanha acima montanha abaixo, só para caminhar ao longo de um riacho, passear na floresta ou fugir ao trânsito ruidoso das estradas nacionais.

O percurso é basicamente paralelo à Estrada Nacional 1 (em Portugal) e à Carretera N-550, que há 10 séculos atrás deviam ter um pouco menos de camiões. E realmente, tiro o meu chapéu à quem adaptou o percurso d’O Caminho, porque sem se afastar muito das actuais estradas nacionais, conseguiu uma rota cheia de pontos de interesse, em que na maioria das vezes caminhamos paralelos a uma via cheia de trânsito, sem ter a noção disso.

Mas caminhar junto aos rios, por terras barrentas e alagadas, subir e descer calçadas ingremes, feitas com pedras ciclópicas é uma coisa, pedalar numa bicicleta de gravel com alforges com 10 kgs la dentro é outra. E para quem queria fazer O Caminho de bicicleta, sem se desviar dele nem tomar atalhos, foi um desafio.

– Então foste fazer O Caminho, tanta coisa com Santiago, com a descoberta do teu Eu, tanta prospecção interior, para nada? Chegas lá, sentas-te na praça da Catedral, fazes um desenhito rápido e basas para a estação de comboios para regressar a casa?

Pois, as descobertas dão-se quando perdes o controlo da situação e quando és posto à prova. Estares na bilheteira da estação, a jurares a ti mesmo que só voltas a pegar na bicicleta para o próximo ano Jacobeu, e o senhor do guichê diste-que que não há bilhetes, que no máximo te arranja um lugar no comboio Vigo-Porto, que sai daí a 6 horas. E estás a 90 kms de Vigo. E não te apetece ir dormir ao Porto.

O verdadeiro Caminho começa aí. Quando percebes que, mais importante do que ir rezar junto do túmulo do apóstolo, coitado, que já nem deve ter nada lá dentro (perdão, meu Senhor), é regressar a casa! É voltar a abraçar os filhos, os pais e voltar a cair nos Braços da Querida Esposa! Essa é que é a verdadeira peregrinação! E cada um tem o seu próprio Caminho.

E quando sabes para onde vais, o corpo vai buscar energia e alento a sítios recônditos. As mitocondrias das células músculares voltam a encher-se de energia, e as pernas desatam a pedalar como se fosse hoje o primeiro dia da viagem. As dores desaparecem e, mesmo contra o vento, a Lael desliza mais veloz que nunca (também desta vez não vais pelas calçadas rupestres nem pelos lodaçais).

A Compostela que ganhei por chegar a Santiago não é comparável ao beijo que sei que vou receber dos meus pais, quando amanhã tocar à sua porta, e finalmente os sentir descansados por me verem ali. A credencial cheia de carimbos, que recolhi durante os dias d’O Caminho, não será uma memória tão forte como as que me vão ficar do momento em que voltar a abraçar os meus filhos, a ter a Branquinha no colo, a ronronar e no Domingo, ir receber a Querida Esposa ao aeroporto, já todo aprumadinho, de barba feita e perfumado!

Desculpa lá, Santiago, mas sei que me compreendes. Não sou nenhum santo como Tu foste, mas sei exatamente o que esperas de mim: Que seja um bom filho, pai e marido. Que trabalhe para ganhar o sustento e cumprir os compromissos que assumi no escritório, em vez de andar para aí a brincar aos pobrezinhos, a dormir em lares de idosos a que chamam albergues, com mais umas 10 pessoas no quarto, partilhando a casa de banho e os cheiros mais íntimos de cada um.

Conheci muitas pessoas no Caminho: o Xavier, o Pierre, e ontem o Saraiva, que sei que ainda voltarei a ver. Mas os verdadeiros amigos estão em redor de casa, e são eles que fazem que o nosso Caminho pela vida seja assim tão especial.

Adorei pedalar por Portugal e pela Galiza, com tempo e sem pressas, sem destino marcado e confiando sempre na minha capacidade de me bastar. É inacreditável como o mundo é tão capaz de nos deslumbrar, se vivermos atentos ao que se passa em nosso redor. É inacreditável como a natureza é tão poderosa na sua beleza e diversidade, e que por muito que tentes captar isso, por meio de fotografias ou filmes, nunca conseguirás experimentar a sua plenitude, se não estiveres lá.

É preciso sair, mergulhar na sua imensidão, embrenharmo-nos no seu interior, para conseguir realmente apreciar todas as dimensões de algo tão maravilhoso assim.

Por isso, filhos (este blogue é para eles, como sabem, mas abro uma excepção para ti, que tiraste uns minutos para ler isto e assim sempre te poderei dar algo em troca, do fundo da minha parca sabedoria), nunca queiram viver apenas uma parte da vida. Não percam a melhor parte, que só se vive se vivermos com paixão e intensidade.

Se é para viajar, partam à descoberta e descubram algo. Se é para pescar, que seja um merlim com 100 kgs! Vivam, mas vivam sem medo de viver!

4 thoughts on “O Caminho – conclusão

  1. obrigado por partilhares connosco esta tua visão. Obrigado por me tirares do sofá e encheres-me de vontade de também eu escrever boas experiências com o mundo. Obrigado, Grande abraço!

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  2. Gostei de ler. Deixei-me levar nas tuas palavras e assim relembrar o Caminho e do que dele retirei. Chegar a Santiago não é um mero detalhe, não é apenas o culminar de um desejo de superação. É a certeza que ali não será o fim mas o início de um outro caminho, sem setas para seguir. Vá as vezes que for, o que ficar para trás do Caminho será o que se guardar na memória.

    Grande Abraço.

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