O Caminho – noite sem sono

1.Pierre

Não vos falei do Pierre. 41 anos e sem espaço para mais tatuagens. De todos os que dormiram no Albergue do Rabaçal, era o que inspirava menos confiança.

Estava na mesa da cozinha a ler o meu livro, a ganhar sono para ir dormir, quando ele entra com um copo de vinho, um bolo, um maço de tabaco de enrolar, uma caneta e um bloco.

Estás a escrever um livro?

Naquele bloco estavam 6 meses de Caminho, desde que tinha saído de Paris, em Setembro de 2023, até ontem. Paris até aos Pirenéus, Caminho francês até Finisterra, um mês lá a descansar e a ver se chegava, ou se tinha de continuar a caminhar, e agora até Fátima e depois Sagres. E quem sabe mais.

No braço direito estava a tatuagem do primo que ele gostava muito, e que se enforcou no hospital psiquiatrico onde estava internado, uns dias antes de ele decidir fazer o caminho.

Fazemos assim, Pierre. Quando acabares esse livro, envias para mim. E em troca, quando passares o Tejo, rumo a Sagres, eu vou ao teu encontro e ofereço-te o meu.

2. Ruben

Em todo o caminho, acho que só há uma loja de bicicletas. Assim, mesmo no caminho. Sem teres de te desviar.

Tinha acabado de lavar a Lael (a minha bicicleta) num Stand de automóveis há uns 6 kms atrás, mas o desviador da frente teimava em não puxar a corrente para o prato grande.

Na montra da RC bikes (o apelido dele deve ser Cardoso ou Carvalho) estava escrito, em letras de papel autocolante: “Obrigado Pai! 1951 – 2021”. Claro que entrei. Achei que não era só a Lael que precisava de um conforto.

O pai do Rubem tinha-lhe pegado o gosto pelas bicicletas. O Rúben era atleta federado e competia em provas de estrada, mas um dia, caiu e partiu a clavícula. Era ir para a vala ou contra o carro que não se desviou, nem parou, depois de ver o Rúben caído.

Demorou a recuperar mas já estava a voltar à forma, quando teve outro acidente. E deixou-se de estradas. Os rolos não são a mesma coisa, mas sempre dá para ir mantendo as pernas a mexer.

A loja está cheia de bicicletas, mas ele diz que não são dele. São da mulher, da filha, do primo. Já se nota alguma barriga, por baixo da t-shirt do único mecânico de bicicletas do caminho, e os amigos não param de o desafiar para voltar à estrada.

Falei-lhe da minha viagem, e das aventuras que fazemos. Os olhos dele brilharam.

Quando sai, depois de me ter pedido 5€ por ter posto a Lael como nova, e enquanto voltava a carregar a Lael com os Alforges, junto da montra com as letras mais bonitas que já vi, reparei que ele olhou para a Bianchi azul celeste, que era mesmo a cara dele, com os mesmos olhos brilhantes e sonhadores que tinha há pouco.

Agradeci-lhe mais uma vez. Engatei o sapato esquerdo no pedal e deixei-me ir. A corrente passou para o prato 52 com a mesma suavidade com que se beija um filho antes de dormir. E fui o resto do caminho a pensar que todos devíamos agradecer mais aos nossos pais. Mas de preferência, enquanto estão vivos. Por isso;

– Obrigado, Mãe 1934 –

– Obrigado, Pai 1944 –

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